15 novembro 2007


O artista da luz


O artista-pintor é aquele cuja obra está diretamente ligada a conceitos criativos, não-repetitivos, intencionais, cujas funções são determinadas pelos seus momentos expressivos. Essa é a grande diferença entre o artista e o não-artista e, conseqüentemente, da obra artística e da obra não-artística. Um dos paralelos possíveis entre a arte da pintura e a arte da iluminação é aquele que condiciona a arte da iluminação a intenções de expressividades, não mecanizadas, complexas e únicas em suas características objetivas e subjetivas. Seguindo essa linha de pensamento, o artista de iluminação é aquele que utiliza suas capacidades expressivas intencionalmente na criação de obras artísticas visuais através da luz.
Outra discussão bastante importante que se coloca na essência da própria arte é a antítese que resulta de duas visões opostas que se tem dela, ou seja, a visão de que a arte ou as artes seriam simplesmente figurações espirituais, portanto, extremamente interiores e a visão oposta, que parte do princípio de que a arte seria um mero produto técnico. Fantasioso ou ofício, sonho ou artesanato. Em nosso auxílio, Pareyson (1989) esclarece que não entenderemos a arte se não sairmos dessa antítese falsa e artificiosa, posto que:

Reavaliar a espiritualidade da arte, descuidando ou desvalorizando seu aspecto extrinsecativo e físico, significa dispersar a atividade artística nas veleidades do capricho ou na nebulosidade do sonho; insistir na fisicidade da arte, esquecendo o aspecto interior e o caráter espiritual da extrinsecação, significa rebaixar a atividade artística ao tecnicismo do ofício. Enquanto o aspecto interior e o aspecto extrinsecativo da arte estiverem distintos ou separados, e colocados em sucessão ou até mesmo em oposição, um com respeito ao outro, não deixa de haver o perigo de que um dos dois se absolutize, substituindo completamente o outro, ou absorvendo-o e anulando-o em si. Uma explicação da arte está ligada à possibilidade de mostrar como nela, figuração interior e operação executiva, atividade espiritual e extrinsecação física, idealidade e sensibilidade, longe de se contraporem ou de se sucederem, ou de se anularem uma na outra, coincidem, pelo contrário, sem resíduo (PAREYSON, 1989, p. 117)[1].

Pode-se também, a partir desses conceitos e leituras, observar o caráter genuinamente artístico do desenho de iluminação, cujos modos de atuação espiritual e material sugerem o comprometimento entre esses dois princípios do fazer artístico. Os designers se vêem constantemente materializando conceitos espirituais através de seus ofícios, técnicas e ferramentas.
No entanto, na iluminação de palco, o “artista da luz” não é o artista único da obra, mas um dos componentes do complexo universo expressivo que é o espaço do palco, seja ele no teatro, na dança, na ópera, nos musicais, nas performances etc. Outros artistas e outros elementos expressivos caminham num sentido único, caso a obra busque essa consistência harmônica entre esses elementos, e isso não pode ser uma regra, como não pode haver nenhuma regra quando se fala em expressão poética na arte complexa do palco, que busca as relações harmônicas com objetivos similares e que almejam equilíbrio.

A iluminação existe no sentido de enriquecer o espetáculo, revelar suas intenções e significados, descrever e configurar os espaços fictícios, traduzir emoções, climas, não como um espetáculo à parte, mas como um dos elementos orgânicos da cena, dotado de características próprias, que vêm acrescentar alguma coisa ao que já existe, oferecendo uma tradução visual que não ultrapassa desnecessariamente, e que não fica a dever. Neste sentido, há de se encontrar um meio-termo entre o que o espetáculo espera da iluminação e o que esta deve oferecer a ele: é o ponto de equilíbrio entre o aspecto referencial da luz e os aspectos emotivo e poético, que trazem, obviamente, a marca pessoal do iluminador (CAMARGO, 2000, p. 145)[2].


Mas a arte do iluminador, ou do designer de iluminação, ou ainda do desenhista de iluminação, possui também suas complexidades na execução. Da mesma maneira que o arquiteto não executa a maioria de suas obras, que fica a cargo de outros profissionais, tais como pedreiros, serventes, mestres de obras etc., os desenhistas de iluminação não executam, necessariamente, nem as montagens de seus projetos e nem a operação dos efeitos de movimentação espaciais e temporais da luz nos palcos, ou seja, nos momentos em que a obra está sendo construída em sua condição material e em que está sendo executada como obra de arte ou, melhor dizendo, quando se realiza ao público. Isso faz dela uma atividade que depende de outros profissionais, recursos humanos muitas vezes com capacitação especializada. Eletricistas, operadores de mesa, operadores de efeitos etc.
Essas atividades têm características próprias dentro dos desenvolvimentos técnicos de um projeto, de uma obra. Apesar de serem diferentes, recebem necessariamente o influxo criativo dos designers, materializando-os. Além disso, essas atividades são solidárias entre si, posto que delas dependem não somente a montagem e correção de todos os itens que trarão à obra a sua dimensão material, mas sua correta aplicação e funcionamento durante os espetáculos.
O designer de iluminação ou lighting designer, o artista da obra feita com a luz sobre outras obras, é aquele cuja experiência está intimamente ligada à aventura estética. Essa aventura, que é a de todos os artistas, técnicos, críticos, historiadores, é aquela em que a experiência prática, a atividade concreta, o fazer material e o humano recebem as inflexões e reflexões de sentidos mais elevados, mais subjetivos, na busca de poéticas, de embasamento estético, pois:

(...) se pode chegar à estética a partir de duas direções diversas mas convergentes: ou da filosofia, quando o filósofo estende seu puro pensamento a uma experiência de arte, ou da própria arte, quando de um exercício concreto de arte, ou de crítica, ou de história, emerge uma consciência reflexa e sistematicamente orientada pela própria atividade. O essencial é que uns e outros façam filosofia, isto é, extraiam da concreta experiência da arte, como quer que seja entendida, o alimento e o estímulo de uma reflexão filosófica, a qual, no momento em que enfrenta o problema estético, enfrenta também, implícita ou explicitamente, todos os outros. Contanto que, ao fazer estética, o filósofo não descuide a solicitação da experiência e os dados que críticos, historiadores, artistas e técnicos lhe oferecem e, contanto que, ao fazer estética, os artistas, historiadores, críticos e técnicos não esqueçam de transferir-se para um plano especulativo, todos se encontram na estética, cada um trazendo, na tarefa comum, a particular sensibilidade e competência que deriva de sua proveniência pessoal e mentalidade. A estética torna-se assim um frutífero ponto de encontro, um campo no qual têm direito de falar os artistas, os críticos, os amadores, os historiadores, os psicólogos, os sociólogos, os técnicos, os pedagogos, os filósofos, os metafísicos, com a condição de que todos prestem atenção ao ponto em que experiência e filosofia se tocam, a experiência para estimular e verificar e a filosofia para explicar e fundamentar a experiência (PAREYSON, 1989, p. 20-21)[3].



[1] PAREYSON, L. Os Problemas da Estética. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1989. p. 117.


[2] CAMARGO, R. G. Função Estética da Luz. Sorocaba: TCM Comunicação, 2000. p. 145.


[3] PAREYSON, L. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 20 – 21.

Nenhum comentário: