23 abril 2006

Técnica e Estética - Opostos Complementares

As cortinas se abrem vagarosamente. O público estanca por uma pequena eternidade seus mais íntimos conflitos pessoais.
Agora não é possível pensar em si mesmo, nas pequenas coisas, nas futilidades do dia. Nasce como que por encanto uma outra realidade. E ela começa muda, surda, como se todo o universo conhecido oferecesse uma pausa. Uma luz de um azul tênue banha o quadro, essa pintura dinâmica que é o teatro.
A luz vem do infinito e cai como uma chuva calma sobre os atores em silêncio. É uma luz que banha suas costas e precipita seus rostos numa penumbra fria, cálida. Não há movimento, não há respiração, apenas vida e uma vida de infinita latência. Por alguns segundos tem-se a impressão de que basta isso para que a existência aconteça.

Lentamente um sol de amarelo e âmbar invade essa tela e expõe com delicada clareza algumas faces entristecidas pelo tempo e pelo sofrimento. Os trabalhadores caminham para seus afazeres e trazem consigo os barulhos, os suores, os pensamentos. Esse sol movimenta-se em um tempo diferente, em um tempo que pertence apenas ao imaginário, porém, sua força é extremamente real, tudo é real, tudo vibra em conjunto, tudo é feito e idealizado para tudo. Essa é a marcha constante da realidade que provoca em nós a sensação da continuidade do existir. E assim se passam as horas compactadas nesse tempo virtual. Os personagens desse drama, que é o drama de todos nós, tecem nesse clima seus afetos, suas relações, seus anseios...

Os cenários são invadidos pela cor quente e pelas sombras sinuosas; então, um grito, o sol desaparece num eclipse rápido e violento. Em seu lugar surge abruptamente outra tela, outro universo. Num canto, que poderia ser um canto qualquer; músicos tocam e casais dançam sob uma luz de fumaça. Homens bebem e mulheres gracejam. Outro tempo, outras coisas...

Os suores agora são os suores da alegria e da liberdade. Candeeiros acesos transformam a noite e a taberna num lugar festivo, barulhento. Os sons e os cheiros que também pertencem a essa luz refletem-se nos olhos da assistência que insinua um sorriso cúmplice. E assim, os momentos descortinam-se nesse outro mundo, um mundo à parte, feito de luz, feitos de cor, de intensidade, de sabor e de sensibilidade.

Além desses mundos, atrás das cortinas, por detrás das paredes, cenários e coxias, a razão trabalha misteriosa e silenciosamente para que a poesia viva.
A iluminação de palco seja ela qual for, não é apenas o acender das luzes, mas um intenso exercício de composição estética fundamentada no conhecimento artístico. Exercício esse que busca a dialética dos processos de criação e execução.

Ao falarmos sobre estética da luz estamos falando necessariamente sobre a estética pictórica. Isso se dá exatamente porque o olhar do público sobre a cena torna-o um olhar de dimensões abrangentes, onde os símbolos falam por si e compõe os demais sob sua influência, interativamente, da mesma maneira que ocorre na pintura. Nesse âmbito, a idealização da iluminação passa necessariamente pela sensibilidade artística do idealizador, pela capacidade de entender os nuances de significação desses símbolos no todo, que é o resultado final da obra. Esse conhecimento pode ser adquirido através do estudo da arte e de sua história e vai avançando paralelamente com o desenvolvimento do artista. É óbvio que alguns terão maiores facilidades do que outros no que diz respeito às questões de sensibilidade e expressão. Isso é bastante pessoal. Como qualquer artista, o designer de iluminação tem todo um caminho de maturação.

Mas o artista não pode viver só de pensamentos e emoções, só das criações do espírito. O artista necessita da expressão material de suas criações para que se torne artista atuante e sua obra influencie, se torne conhecida. Entram aí então as questões referentes aos conhecimentos técnicos . Em minha opinião esses conhecimentos são fundamentais para o desenvolvimento expressivo na área. Lembrando que estamos falando sobre expressão através da iluminação, temos que levar em consideração os desafios estruturais, ferramentais e processuais da atividade. No caso dos pintores esses desafios encontram-se nos suportes, pincéis, tintas, nos processos, em seu desempenho, enfim, nos materiais e condições através das quais o artista se expressa no mundo. No caso dos artistas da iluminação, esses desafios encontram-se nas estruturas físicas, elétricas, de equipamentos, de acessórios, etc. Desafios que também exigem desses profissionais, abertura, desenvoltura, adaptabilidade e constante reciclagem de informações, pois, as tecnologias desenvolvem-se rapidamente e diariamente novos produtos são lançados no mercado. Isso a meu ver é outro ponto importante. Embora não devamos cair nos modismos que as empresas tentam impor aos seus clientes a fim de aumentar seu faturamento, não podemos ficar desatualizados. Nem neuróticos e nem passivos, devemos estar prontos para conhecer novas soluções sem deixar que elas nos influenciem sobremaneira.

Gosto muito de chamar os equipamentos de iluminação de "pincéis". Na verdade o são, porém, sua diferenciação se dá exatamente quanto ao desenho e cor projetados pela matéria física aplicada. Essa "matéria" que é a luz tem comportamentos diferentes das tintas utilizadas pelos pintores, ou seja, dos pigmentos. No palco, as estruturas, cenários, figurinos, acessórios, elementos, atores e atrizes, suas maquiagens, etc, formam o suporte no qual essa outra "tinta" é aplicada por esses outros "pincéis". Quando nesses suportes são utilizadas pigmentações com variação do branco, a luz colorida tinge-os, como nos suportes da pintura, cujo acabamento será o da pigmentação sobre a tela. Quando esses suportes são pigmentados com variações cromáticas, ou seja, possuem coloração, a luz surge como produtora do processo de velatura . Aí é que entra o conhecimento e experiência do artista-iluminador. Misturas veladas produzem necessariamente terceiros cromatismos. Uma luz magenta sobre pigmentação amarelada resulta em variações de vermelho; luzes amarelas sobre pigmentação azul também resultarão em variações do vermelho, já uma luz vermelha sobre um fundo ciano, escurecerá sobre maneira o objeto, tendendo-o ao cinza escuro, e assim por diante. Isso se dá porque os sistemas aditivos e subtrativos interagem entre si formando padrões complementares.

Na iluminação, assim como também na pintura, os desenhos carregam sua cota de simbolismo, de signos, sinais. As formas projetadas pelos equipamentos nos palcos produzem sensações espaciais, temporais, entre outras, e essas sensações acabam transformando-se em sentimentos na platéia e no próprio palco. Banhos, gerais, focos, recortes, projeções, são algumas das formas pelas os quais os designers de iluminação se utilizam para provocar esses sentimentos, daí também a importância do conhecimento dessa complexa linguagem. Mas as luzes de palco possuem também outras propriedades que vão somando-se e formando esse universo sensível. Direção, intensidade, movimento , duração, compõem outra gama razoável de significação. Pretendo com isso destacar a expressão artística no trabalho dos designers de iluminação, ao mesmo tempo, enfatizando a importância que o conhecimento técnico tem para esses profissionais. Duas energias que se complementam, e que a meu ver, formam o que poderíamos chamar de profissional-artista completo e equilibrado.

Na maioria das vezes percebo que é através desse profissional-artista que as novidades técnicas têm os seus porquês e seus fundamentos. Na acentuada troca de informações entre técnica e estética originada nessa atividade, surgem novos produtos, e é interessante notar que com o surgimento desses novos produtos, paralelamente, surgem novas estéticas. É como se a modernidade reinventasse o passado em outros níveis. No simbolismo do Tai Chi Chuan, a luta eterna entre a serpente e a águia, a terra e o céu, o positivo e o negativo, produzem o movimento criativo. Velhas estórias, moderníssimas versões. Discussões sobre a importância técnica em oposição à estética provocam necessariamente novas criações advindas da luta entre esses opostos também eternamente complementares.

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